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domingo, 7 de abril de 2013

Morte do Ego: transformando as impressões por meio da Dualidade.

Aprendemos, em passadas reflexões, que devemos controlar os sentidos (Indryas), evitando as percepções daquilo que reforça os egos. Aprendemos também que devemos nos antecipar aos defeitos, removendo suas causas. No entanto, algumas vezes somos inevitavelmente atirados em certas situações das quais não podemos escapar. Quando isso ocorre, somos impactados emocionalmente pelos eventos de forma brusca e repentina, sem chance de nos anteciparmos aos mesmos para evitá-los ou desviarmos as percepções, fechando as portas às impressões destrutivas e negativas. Em tais situações, a prática da transformação das impressões é uma adicional ferramenta de trabalho que nos ajuda a modificar a maneira de recebermos e percebermos os eventos da vida que nos atingem emocionalmente. Vamos analisá-la mais de perto.

Por que Kaspar Hauser era insensível a ofensas e ameaças? Porque sua mente não processava as ofensas como ofensas e nem as ameaças como ameaças, não havia aprendido a entendê-las como tal. Certa vez um estudioso golpeou violentamente a parede logo acima de sua cabeça e Kaspar Hauser não moveu sequer um músculo e nem esboçou a menor reação. O estudioso então exclamou: "Totalmente insensível!". 

Por ter crescido isolado do contato social, a mente de Kaspar Hauser não aprendeu a reagir aos fatos externos. Sua mente era, num certo sentido, semelhante à mente que gostaríamos de ter. No entanto, Kaspar Houser não possuía consciência disso, ou seja, seu caso não se tratava de um processo consciente e voluntariamente adquirido.

As reações da mente aos fatos são, em grande medida, resultado de aprendizagem. Aprendemos a reagir a cada fato de determinada maneira e a maneira como reagimos corresponde à forma como os entendemos, como os processamos por meio da mente. Reagimos às ameaças com medo porque as processamos mentalmente como perigos, reagimos aos insultos e provocações com ira porque os processamos mentalmente como agressões contra nossos pontos fracos. Quando alguém nos ofende em um idioma que não entendemos, nossa mente não processa o ataque como tal e nada sentimos. Nossas reações correspondem à forma como entendemos as coisas e, se as entendemos de uma maneira distinta, as reações também mudam. Nesse sentido, as emoções guardam estreita relação com a mente: sentimos em consonância à maneira como entendemos. Se entendo um fato como ofensa, reagirei com ira, mas se entendo o mesmo fato como um elogio, reagirei com vaidade ou ficarei orgulhoso. Esse é o motivo pelo qual não adianta tentar corrigir as emoções sem corrigir o entendimento e é também a razão pela qual os mestres instruem os discípulos a começarem o trabalho interior pela mente. A mente é a guarida do desejo.

Nossa forma de entender os fatos é equivocada, o que nos leva a reagir com emoções negativas àquilo que percebemos. Aquilo que chamamos de "fatos desagradáveis" não são mais que formas tendenciosas de compreender o mundo. O caráter desagradável não está no fato exterior em si, mas em nossa forma de entendê-lo, de recebê-lo e processá-lo mentalmente. Um mesmo fato pode ser desagradável para uma pessoa e agradável para outra, o que prova o caráter subjetivo de tais percepções. 

Desde crianças, ao longo de nossa vida (das muitas existências), aprendemos a processar interiormente os acontecimentos de determinadas maneiras. O resultado atual é que estamos condicionados mentalmente a entender o mundo de muitas maneiras equivocadas. O trabalho de compreensão dos defeitos abrange a correção desses pontos de vista equivocados que nos fazem sofrer.

Vejamos o exemplo do dinheiro. Desejamos loucamente mais e mais dinheiro simplesmente porque o entendemos como o melhor bem de todos. Achamos que o dinheiro irá comprar felicidade e tal entendimento equivocado nos leva a desejá-lo intensamente. O mesmo se dá com todos os demais desejos, os quais são originados por formas de entender. 

Há, assim, uma estreita relação entre os desejos e emoções sentidos e as formas de entender o mundo, a qual é processada pela mente e aprendida. Temos, portanto, que "desaprender" o que foi erroneamente aprendido.

A forma pela qual a mente processa as percepções exteriores guarda estreita relação com a imaginação. Se nos apontam uma arma de brinquedo e acreditamos que a mesma seja real, sentiremos as emoções correspondentes. O motivo é que nos imaginamos em perigo. Entre imaginar e entender há grande interdependência. O que acontece quando uma pessoa, ao ser insultada, não entende direito o que está se passando e imagina que o insultador está brincando, fingindo insultá-la? Ela não reage com ira, pelo menos não antes de entender o insulto como tal. O motivo está na imaginação: a pessoa se imagina em uma situação diferente do insulto. 

Insultar ou ameaçar alguém é uma forma de ferir sua imaginação. A pessoa que grita e ofende quer ferir a imaginação do outro. Quando a imaginação da vítima é atingida, ela passa a pensar constantemente naquilo, sua mente é invadida por maus pensamentos relacionados ao problema e assim permanece por um tempo relativamente longo, de acordo com a intensidade da identificação da pessoa com o fato. 

Quando alguém tenta refrear suas emoções negativas sem corrigir o entendimento equivocado que lhes corresponde, cria um conflito entre a imaginação e a vontade, ou seja, entre a mente e as emoções, originando uma neurose. O resultado é a intensificação do sofrimento. Se constantemente penso e ocupo minha imaginação com um problema, não poderei deixar de sentir as emoções correspondentes. 

Assim, temos que corrigir os entendimentos equivocados, mas como fazê-lo? Antes de mais nada, corrigindo a imaginação. Se, no momento em que somos impactados por um fato, o imaginamos da maneira oposta, desarmamos o ego naquele instante. Isso se chama "transformar a impressão". Há que se entender claramente isto.

Todo entendimento dos fatos possui um entendimento contrário que o anula. Quando encontramos a antípoda de um entendimento tendencioso e colocamos na mente, o anulamos e chegamos a uma síntese, isto é, à neutralidade. Em última instância, os fatos não são, em si mesmos, bons e nem maus, simplesmente existem, são processos naturais. Por pior e mais traumático que seja um fato, o será somente do ponto de vista subjetivo, isto é, do ponto de vista de quem o percebe assim. O Ego faz com que sempre vejamos as coisas como boas ou más, desejáveis ou detestáveis. Passamos a vida entre tais opostos, os quais são subjetivos, e não enxergamos a realidade objetiva. 

Diz o V.M.R. que podemos transformar a impressão que os fatos ocasionam aplicando a Dualidade. Isso significa, no meu entender (pobre adormecido que sou!) que temos que encontrar um modo de imaginar o fato que seja oposto ao modo como o estamos imaginando naquele momento: se estou diante de uma mulher linda que me perturba, devo imaginar algo que se encaixe perfeitamente naquela situação e anule a fascinação por sua beleza. Não é qualquer coisa que serve e isso varia de uma pessoa para outra. Para alguns, pode dar resultado imaginar que aquela pessoa é um simples ser humano, um mero animal racional como todos somos, um mamífero bípede. Para outros, imaginar o corpo da mulher envelhecendo e se desintegrando na sepultura pode dar o mesmo resultado (não se trata de desejar que ela morra e sim de enxergar o outro lado da questão). Isso varia. O que importa é ir além dos opostos e chegar à sintese, que é a neutralidade, passando além do desejo e da aversão. Estamos em um pólo do entendimento e, para ir além dos pólos, temos que encontrar o entendimento oposto, para confrontar ambos. Após o confronto, nos liberamos (temporariamente) daquele tormento mental e das emoções correspondentes. Essa é a forma como entendo a prática da transformação das impressões. 

Transformar as impressões é, de certa maneira, algo assim como enganar a mente, a qual, por sua vez, já nos mantinha previamente no engano. Não se trata de enganarmos a nós mesmos (nossa consciência), pois isso já o fazemos a todo momento, mas sim de enganarmos a mente, para convencê-la a entender os fatos de outro modo. Enganamos a mente para reverter o engano ou erro no qual ela incorreu, que é o de tomar os fatos de uma forma que nos prejudica e ocasiona emoções negativas e destrutivas.

Diante de um insultador, podemos imaginar (silenciosamente) que o mesmo não está nos insultando, somente encenando uma representação teatral. Essa imaginação seria o pólo oposto da imaginação comum (mecânica), à qual já estamos previamente condicionados, estejamos conscientes disso ou não. Mediante a imaginação oposta, corrigimos o erro, obtemos uma compensação e, ao atingirmos o equilíbrio entre as duas imaginações, por meio do incremento da imaginação que estava descompensada, escapamos da polaridade.

Quando uma pessoa nos ridiculariza ou tenta nos trapacear, podemos anular o efeito emocional provocado se procurarmos entendê-la (ou imaginarmos, se você preferir assim) como alguém que se encontra em um estado lamentável, muito pior que aquele em que estamos. Essa imaginação fornecerá o pólo contrário necessário para a correção da percepção tendenciosa equivocada. Então, se estivermos práticos, a ira poderá se transformar em piedade e não sofreremos. A irritação diante do escárnio provém da idéia, ainda que inconsciente, de que o escarnecedor está em condições superiores às nossas (e, portanto, em condições de nos ridicularizar), o que é um equívoco, pois o escárnio, em si mesmo, não é bom e nem mau, simplesmente é um fato que existe, mas que a ira não nos permite perceber objetivamente. Tampouco o escárnio, de um ponto de vista objetivo, coloca o escarnecido em uma posição inferior ao escarnecedor, somente o faz desde um ponto de vista subjetivo, pois, objetivamente, a vítima, em si mesma, não perde e nem ganha nada ao ser escarnecida (prova disso é que, quando o escárnio não é compreendido como tal, não atinge a pretendida vítima). Portanto, o ponto de vista da ira de quem é vítima do escárnio é subjetivo, tendencioso e equivocado, necessitando ser corrigido. Uma pessoa como o Buda é completamente imune ao escárnio e não necessita fazer força alguma para tanto, porque simplesmente vê o mundo de forma objetiva, sem os equívocos tendenciosos da dualidade.

Quando a alma escapa da mente, durante a meditação, se liberta também da dualidade e já não vê o mundo como uma soma de coisas boas e más, desejáveis e detestáveis. Vida e morte, doença e saúde, velhice e juventude, pobreza e riqueza perdem seu sentido. Escapar da mente é perder a noção daquilo que entendemos ordinariamente como lógica, coerência e sentido, para adquirirmos uma superconsciência onde tudo é resignificado. Porém, na meditação, tal estado é temporário e nós queremos algo mais: almejamos cristalizar definitivamente tal estado em nós, o que somente é possível mediante a Morte do Ego.

A prática de imaginar os fatos como sendo o contrário do que normalmente imaginamos que sejam não provoca a morte dos defeitos que estão por trás das imaginações mecânicas e emoções negativas, porém os desarma temporariamente, o que é de grande valia. Esta é a prática da Transformação das Impressões, que faz com que recebamos os acontecimentos de outra maneira e impede a criação de novos defeitos. Esta prática não substitui de modo algum a Morte em Marcha e nem tampouco lhe é incompatível. É uma arma ou chave adicional que os Veneráveis Mestres nos entregaram para a Morte. Obviamente, quem pratica a Morte em Marcha está corrigindo os entendimentos equivocados e imaginações tendenciosas, pois do contrário perderia todo o trabalho alcançado.

Diante de um fato, o primeiro cuidado deve ser o da recordação de nós mesmos (Recordação de Si), para evitar que a fascinação nos "apague", mas isso não basta. O segundo cuidado deve ser a Auto-observação, para verificarmos se estamos sendo atingidos em algum centro da máquina ou não. Se estivermos sendo atingidos, o próximo passo é aplicar a Morte em Marcha e a Transformação das Impressões entra aí como um trabalho fusionado. O resultado dessas práticas é o aumento cada vez maior da compreensão.

Transformamos as impressões compreendendo as situações. Ao compreendê-las, modificamos a forma de pensar e imaginar a respeito das mesmas. É claro que aprofundar a compreensão sobre algo equivale e a modificar os pensamentos e imaginações que tenhamos a respeito. Ninguém poderia aprofundar a compreensão e continuar com as mesmas idéias pois o compreender exige uma modificação no entendimento. Compreender é descobrir o novo e descobrir o novo é deixar a velha concepção. Quanto mais compreendo algo, mais modifico minhas concepções a respeito daquilo e, por extensão, meus pensamentos e imaginações relacionados.

A transformação das impressões não é uma análise dos defeitos, mas sim das situações que os evocam. A análise dos defeitos pertence a uma outra instância do trabalho interior. Transformamos as impressões no momento de entrada, no instante em que os acontecimentos exteriores nos impactam e chocam o nosso psiquismo. A impressão deve ser transformada imediatamente, por me, meio da compreensão. Transformar a impressão é "mudar a forma de ver", modificar o ponto de vista, alterar o significado do fato que nos impacta ou choca. Os acontecimentos sempre nos têm chocado sem que os percebamos conscientemente, mas agora temos que nos tornar conscientes desses choques. Quando começamos a perceber conscientemente o impacto dos eventos da vida, experimentamos o Primeiro Choque Consciente (pois até então os eventos nos chocavam inconscientemente, ou seja, tínhamos somente choques inconscientes).  O choque consciente é o choque modificado pela compreensão.

Quando compreendemos algo, modificamos a impressão que aquilo nos causa e passamos a vê-lo de outra maneira, mas para tanto é necessário refletir sobre a situação impressionante até o ponto de irmos além da forma como sempre a vimos. No entanto, há um obstrução para essa reflexão, para tal compreensão: os condicionamentos passados do Ego.

A única forma de modificarmos as impressões no momento de sua entrada, antes que causem danos, é por meio da Morte em Marcha. A Morte em Marcha modifica a impressão que os fatos provocam. Quando transformamos uma impressão, os egos correspondentes não se alimentam e não surgem novos egos ou novas facetas egóicas em nosso psiquismo. Assim, podemos interromper o processo de decadência espiritual.

Os defeitos existentes são impressões que não foram transformadas no passado e agora vibram intensamente em nosso psiquismo, originando formas equivocadas de ver, perceber, pensar e imaginar os fatos da vida.

A visão que temos do mundo, da vida, dos problemas, dos prazeres etc. são falsas e mentirosas, mas acreditamos que sejam reais, pois estamos enganados pelas impressões equivocadas que fortificamos no presente e no passado. E Ego nos engana e nos faz ver o mundo de determinada maneira condicionada, a qual nos leva a temer a dor e desejar os prazeres, pois estamos presos na dualidade. E isso está diretamente ligado à imaginação pois imaginamos as coisas de acordo com a impressão que delas tenhamos.  

Portanto, quem quer modificar seus estados internos, necessita transformar as impressões que os fatos externos lhe causam. E quem quer transformar as impressões necessita compreender melhor e de forma mais objetiva tais fatos, receber de forma consciente o choque ou impacto que os mesmos ocasionam no psiquismo, não nutrir impressões equivocadas com respectivas imaginações equivocadas e também, é claro, aplicar a Morte em Marcha em cada pequena alteração que os acontecimentos provoquem em seus centros, pois tais alterações não são mais que impressões não transformadas. Uma impressão não transformada é uma impressão equivocada, errônea e falseante.

Após a leitura deste post, sugiro a você que estude profundamente esta conferência, sob a perspectiva da Morte em Marcha e dos Detalhes:


Ao estudar a conferência, você descobrirá que o ensinamento sobre a Morte em Marcha e os Detalhes  converge completamente com o ensinamento sobre a Transformação das Impressões.