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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Aplicando a dualidade aos pensamentos

Para cada fato ao qual damos grande importância há alguns fatos contrários que o anulam. Quando estamos exageradamente preocupados com um problema, outro problema ainda pior ou uma alegria imensamente superior podem torná-lo imediatamente insignificante. Quando estamos envolvidos com alguma modalidade de prazer, outro prazer muito maior ou uma dor exagerada poderão torná-lo sem sentido. Os valores que conferimos são relativos. Algo valerá muito ou pouco de acordo com o referencial adotado. No mundo fenomênico em que vivemos, os objetos, os fatos, as coisas, não possuem valor absoluto. Estamos aprisionados na relatividade.

O mesmo princípio vale para os pensamentos. Todo pensamento corresponde a um valor, traz um valor embutido. Um pensamento insistente relacionado com algum problema sério em que tenhamos nos metido perde seu sentido no momento em que conjeturamos a possibilidade de que um outro problema distinto e ainda pior, e que nada tenha a ver com o primeiro, nos afete. Portanto, o pensamento em um problema é anulado pelo pensamento em outro problema, o que significa que ambos possuem, entre si, uma relação de polaridade: um conduz à compreensão da nulidade e inutilidade do outro. Neutralizar um pensamento mediante o seu oposto é o que se chama de "aplicar a dualidade".

O que é aplicar a dualidade a um pensamento? É encontrar um fato que, ao ser considerado (pensado, conjeturado), torna sem sentido o fato no qual estávamos pensando, esvaziando-o de importância. Todo pensamento, bom ou mal, está em nossa mente por identificação. E se nos identificamos com um pensamento, estão estamos lhe conferindo importância, seja positiva ou negativa. Se fico pensando na discussão hostil que tive com um colega de trabalho, estou conferindo importância a essa discussão. Se fico pensando na mulher nua que vi em algum lugar, estou conferindo-lhe importância. Conferimos importâncias boas ou más aos conteúdos dos nossos pensamentos. Se queremos anulá-los, temos que encontrar os seus contrários.

A maior parte dos pensamentos surgem na mente e nos deixam ao serem simplesmente percebidos. Mas há pensamentos renitentes, teimosos e insistentes como, por exemplo, uma música que fica tocando na cabeça ou um problema que fica martelando. Neste caso, temos que encontrar os fatos opostos que, ao serem levados em consideração (pensados) os inutilizam. Que valor atribuímos à música teimosa que se repete infinitamente? Será um valor positivo (gostamos dela) ou negativo (a detestamos tanto que não a esquecemos)? E o que tornaria aquela música sem importância? Outra música ainda melhor ou uma música tão detestável que a tornaria sem valor algum?

Aplicar a dualidade não significa deixar uma identificação por outra, simplesmente trocando-a. Não é identificar-se com algo novo. É aprender a anular ambas as identificações, uma pela outra. O fato contrário anulante é evocado somente com o intuito de cancelar a identificação com seu contrário e não de gerar uma nova identificação. Caso isso ocorra, temos que apelar para um terceiro que irá anular o segundo. O ideal, no entanto, é evocar o segundo fato sem, entretanto, nos identificarmos com o mesmo. Como previamente estamos em recordação de nós mesmos e não fascinados pelo fato a ser evocado, torna-se mais fácil evitar a identificação.

Esta prática, normalmente, deve ser empregada somente nos pensamentos teimosos, que não nos abandonam mesmo após serem contemplados e insistem em atrapalhar a concentração/meditação.

Buscar a dualidade é uma forma de abandonar os pensamentos intrusos:

“P. – Mestre, quando se está concentrado num Koan, se cruza um pensamento… que é que se vai fazer amanhã, coisas do trabalho. Que se faz com esse pensamento?

V.M. – Não, seguir o Koan, a concentração no Koan. Deixar isso que chegou à mente. Abandoná-lo. Dizer: ‘Veja, eu não estou buscando isto, estou numa concentração’. E abandona isso.

P. – Verbalmente?

V.M. – Não, mentalmente. Abandona-se, despreza-se esse pensamento ou se lhe busca a dualidade. ‘Amanhã tenho que fazer um trabalho’. Qual é a dualidade desse trabalho? Não fazer nada. Essa é a dualidade.

P. – Se buscamos a dualidade, não nos evadimos do Koan?

V.M. – Não, porque se coloca a dualidade, o positivo e o negativo; coloca-se e se segue com sua concentração.” (1)

Buscar a dualidade não é evadir-se do koan, que, no caso acima, é o objeto da concentração. Logo, buscar a dualidade não é evadir-se da concentração.

Buscar o oposto de um pensamento é buscar outro pensamento que o anule. Todo pensamento possui um contrário que o anula, o deixa sem sentido. Quando se alcança encontrar tal oposto, chega-se a uma síntese de ambos e se os descarta. A síntese é a neutralidade, fusão dos opostos. Antes de se chegar à síntese, se está preso à tese ou a antítese. Cada pensamento que tenhamos é uma tese ou antítese, pois é imbuído de valor tendencioso.

A dualidade pode ser aplicada tanto a pensamentos insistentes e teimosos que atrapalham a prática como ao único pensamento que restou após a concentração bem sucedida. A busca do oposto de um pensamento é um meio de esgotá-lo, neutralizá-lo.

Se temos um pensamento luxurioso, qual seria o pensamento contrário que o anularia? Isso pode variar de uma situação para outra, bem como de uma pessoa para outra. O contrário de um pensamento luxurioso pode ser um pensamento de morte, de fealdade ou de doença, entre outros. Se, durante a imaginação morbosa, me recordo que irei envelhecer, adoecer e morrer, tal pensamento poderá inutilizar o pensamento luxurioso. O que importa é encontrar mentalmente um fato que torna o objeto do pensamento sem importância, que altere o seu significado.

"Porque, vejam, para a meditação necessitamos concentrar-nos primeiro, que haja um só pensamento.

Então, de repente lhe aparece outro pensamento… a dualidade. Então se descartam juntos e se entra para a meditação.

Para a dualidade se busca a síntese ou o oposto. A síntese e se descarta. Então, a mente vem a ficar em branco." (1)

Na concentração, começa-se pensando sobre os múltiplos aspectos inerentes e intrínsecos ao objeto de nosso interesse (e não sobre outros elementos que, embora relacionados, não lhes sejam intrínsecos e nem inerentes) e desenvolve-se assim o pensamento único até se chegar a uma síntese de todos os pensamentos sobre o objeto. Penetra-se imaginativamente o objeto em todos os seus aspectos possíveis, até onde se alcance:

"P. – Diz-se que a concentração é fixar a mente num só pensamento. Porém, temos que entender que, por exemplo, vamos concentrar-nos neste aparelho, podem vir distintos pensamentos relacionados com esse aparelho e estaríamos concentrados. Por exemplo, penso: É feito de plástico, serve para gravar, é um aparelho que se compra nas lojas eletrônicas… Tudo isso seria o mesmo? Não é um só pensamento?

V.M. – Sim. Por exemplo, você, para se concentrar, tem que olhar a forma, de que material é feito, para que foi feito, e você vai penetrando dentro desse aparelho, até ver por dentro como é, tudo, para poder chegar a uma síntese, a um só pensamento. Do contrário, a nossa mente então começa a trazer cinqüenta coisas aí, referentes ao mesmo aparelho. Então, tratar de penetrar dentro do próprio aparelho." (1)

Neste caso, os múltiplos pensamentos (forma, do que está feito, para que está feito etc.) sobre o objeto são partes do pensamento único que está se desenvolvendo. Quando se chega à síntese do objeto, atinge-se um pensamento único envolvente (dharana), no qual se está a um passo do estado em que, no Raja Yoga, se diz que foi alcançada a união com o objeto e sua essência foi capturada pela consciência (dhyana). Esta captura da natureza essencial e íntima do objeto segue imediatamente após estado que o V.M.R. descreve como “chegar à síntese”. Para se alcançá-la, há que se aplicar a dualidade ao pensamento síntese que restou (buscar o seu oposto neutralizante), pois este ainda não é a realidade, mas tão somente um pensamento sobre a realidade, ainda que dirigido e concentrado.

Um pensamento luxurioso pode ser anulado pela recordação das consequências negativas da luxúria (ex. doenças venéreas, enfraquecimento do corpo etc.), um pensamento de gula, pela recordação das consequências negativas do ato de gula desejado (ex. obesidade, doenças etc.), um pensamento de ira, pela recordação das consequências negativas do ato correspondente (vingança posterior do inimigo, encrencas com a polícia etc.). É claro que, a cada pensamento específico, há consequências contrárias também específicas.

Assim, se você está identificado com algo, pode anular esta identificação recordando-se de algo que seja o seu contrário, que o esvazie de sentido. O que pode ser considerado o contrário daquilo que está te fascinando? Que fato o tornaria sem sentido algum? Se você está identificado com uma mulher linda, o que tornaria sua beleza totalmente desprovida de sentido?

O que importa é compreender a inutilidade do pensamento ao qual damos tanta importância. E o confronto entre o fato no qual estamos pensando e um fato que o torne nulo é um bom meio de lográ-lo. Deste modo, tomamos consciência da inutilidade do pensamento que estamos alimentando.

Ao aplicar a dualidade, você inutilizará o pensamento correspondente, mas não eliminará o ego que o criou, o qual continuará vivo em sua psique. No entanto, se livrará do mesmo temporariamente, o que significa muito durante a concentração/meditação.

Esta é uma medida paliativa para uma necessidade momentânea e não pode ser confundida com a morte do ego emissor do pensamento. Anular temporariamente um pensamento é muito diferente de eliminar o "eu" que o criou.

Nota:

(1). V.M. Rabolú. A Águia Rebelde. (Cap. IX, “Concentração e Meditação”)

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