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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Morte do Ego: a correta relação com o mundo exterior

Todos os defeitos e sofrimentos estão relacionados a algum tipo de desejo. A preguiça é o desejo de não fazer nada, de evadir-se do esforço, a ira resulta do desejo insatisfeito, o ódio é o desejo de que alguém seja prejudicado e arruinado, o medo relaciona-se com o desejo de sentir-se seguro, a salvo do perigo, a gula é o desejo de comer algo para sentir seu sabor, a inveja é o desejo de ter o mesmo que outra pessoa possui. Existem muitos tipos de desejo e não somente o desejo sexual.

Todas as formas de desejo provocam sofrimento. Quando o desejo morre, o sofrimento acaba. É muito importante entender como fazemos para enfraquecer gradativamente o poder do desejo.

Quem nunca tomou consciência da existência de algo desejável, não pode desejá-lo. Quem toma consciência da existência de algo desejável, passa a desejá-lo. Quem renuncia voluntariamente à percepção dos objetos de desejo, após ter consciência da existência dos mesmos, volta a não desejá-los mais. Há, portanto, três estágios no desenvolvimento da alma: 

1) inconsciência da existência do objeto; 
2) consciência da existência do objeto; 
3) esquecimento intencional da existência do objeto. 

Uma é a felicidade dos seres inocentes, que nunca se deram conta ou não compreendem a existência dos objetos de desejo. Outra é a felicidade daqueles que sofreram desejando os objetos mas conseguiram esquecê-los, renunciando aos mesmos. Tormentosa é a existência daqueles que estão na fase intermediária, percebendo os objetos e os desejando continuamente, afogando sua consciência na embriaguês da matéria. 

Quem nunca viu ouro ou jóias, não poderia desejá-los. As crianças não desejam dinheiro, porque neles não pensam e não “entendem” o seu valor. Alguém que tenha contato com ouro ou jóias, passará a entender, com o tempo, que os seres humanos os valorizam em demasia, desenvolverá um entendimento enviesado ou distorcido a respeito e então irá desejá-los. Porém, se tal pessoa decide aprofundar a compreensão a respeito do desejo que sente e, por extensão, do verdadeiro ou essencial valor do ouro e das jóias, chegará a compreender que o valor atribuído aos mesmos é tão somente uma ilusória criação mental, ou seja, o valor não existe objetivamente, somente subjetivamente (as pessoas o inventaram). Caso tal pessoa se divorcie do ouro e das jóias, os abandone, esqueça e deixe de percebê-los, estará, de certo modo e em um certo sentido, retornando ao estado inicial de desconhecimento. Após a compreensão, a pessoa estará “desconhecendo intencionalmente” o objeto de desejo. Para tanto, a pessoa terá que deixar de ocupar-se fisica e mentalmente com aquilo. 

Retornar conscientemente ao estado de inocência original ou à infância espiritual perdida é ocupar-se somente com as coisas do céu, renunciando às coisas da Terra. Entretanto, após estarmos aprisionados no mal, tal retorno não será possível senão após tomarmos consciência de cada prisão. Cada desejo é uma prisão que encarcera uma parte de nossa alma.

O esquecimento intencional daquilo cuja existência não temos consciência é um absurdo. Como eu poderia esquecer algo cuja existência me é desconhecida? O esquecimento intencional ou abandono voluntário requerem a consciência prévia daquilo que nos prende. Não é possível esquecer intencionalmente um objeto de desejo se não estamos conscientes de que o desejamos. E não estaremos conscientes se não nos observarmos em plena relação com o mundo. Portanto, tomamos consciência para nos desligarmos. Quem quer libertar-se do desejo por jóias, deve primeiro dar-se conta de que as deseja e tal consciência não ocorrerá senão pela auto-observação das próprias reações perante a percepção das jóias.

Mas se aquele que percebe que deseja as jóias, ao vê-las, as continua contemplando após tê-lo compreendido, estará, a partir deste ponto, alimentando seu desejo ao invés de enfraquecendo, por uma simples razão: o desejo se nutre pela fascinação, intencional ou não.  Estejamos ou não conscientes da fascinação, ela alimentará os desejos e os reforçará. Este é o motivo pelo qual aqueles que se entretém fascinando-se pelo que desejam jamais se libertam. Temos que descobrir os processos fascinatórios inconscientes e interrompê-los, caso queiramos nos libertar.

A finalidade da auto-observação é levar-nos a descobrir os infinitos processos fascinatórios que se processam inconscientemente durante o dia, enquanto estamos em contato com os objetos da vida. Os objetos desejáveis do mundo físico são uma faca de dois gumes: servem para descobrirmos nossas reações inconscientes a eles mas também promovem a fascinação e podem nos lançar mais profundamente no desejo. Tudo depende da forma como nos relacionamos. Quem se identifica com as coisas do mundo, ao invés de usá-las para o auto-descobrimento, fortifica suas próprias prisões interiores.

Temos que saber como nos relacionar com as coisas desejáveis da Terra. Podemos usá-las para tomarmos consciência de que as desejamos, mas também podemos, caso nos relacionemos equivocadamente, usá-las para nos prejudicarmos, alimentando os desejos que elas provocam e nos afundando cada vez mais no lodo da miséria espiritual.

O que se passa é que um certo fato exterior qualquer do mundo físico que provoca um dado desejo serve para que o mesmo desejo seja descoberto em plena ação. O mérito das almas vitoriosas consiste justamente em não se identificar com tais fatos mesmo que estejam se dando a seu redor a pleno vapor. Por esta via, as almas vitoriosas alcançaram uma pureza semelhante à das almas inocentes, com a diferença de que isto foi conquistado de forma consciente, intencional e voluntária. As almas vitoriosas são crianças porque querem sê-lo. 

As almas vitoriosas não se entretém contemplando  os fatos evocadores do desejo, evitam a fascinação, porém o fazem por vontade deliberada. Elas decidiram não mais olhar para o mal. Já as almas desgraçadas, por outro lado, estão aprisionadas pelo olhar fascinante da medusa, presas espiritualmente ao mal, porque não sabem ou não querem desviar o olhar, não querem abandonar os atrativos mundanos. 

Não podemos explorar o Ego senão através dos fatos que nos acontecem, nos acometem e nos ferem. Não é possível explorar o Ego através de teorizações, conjeturando a respeito do que somos ou sentimos. Temos que vê-lo em ação e tal percepção é possível exclusivamente em contato com os fatos da vida, do mundo exterior. É algo muito interessante: temos que aprender a nos isolar dos fatos do mundo, mesmo estando eles acontecendo ao nosso redor, e fazemos isso após percebermos as reações que provocam em nós. Se você percebeu que sua vizinha está dançando de calcinhas na laje, melhor é não ficar espiando porque senão ficará tomado por um desejo desesperador, se você percebeu que a carta ou mensagem enviada por alguém é negativa e malcriada, melhor é não abri-la e jogá-la na lixeira ou então ler somente as primeiras linhas para se certificar de que se trata de algo prejudicial. Assim vamos cortando os canais de alimentação dos desejos. Tudo isso, é claro, tem que ser realizado através da Morte em Marcha.

O que estamos aqui descrevendo vale para todos os tipos desejo, todos os tipos de defeitos, emoções inferiores ou negativas. Quem teme ser assassinado e fica contemplando assassinatos, seja em filmes ou livros, está alimentando o seu medo. Quem teme fantasmas e assiste a filmes de terror, ficará ainda mais atemorizado. Aquele que alimenta um defeito, torna-se incapaz de libertar-se do mesmo. 

O segredo, a chave da Morte, está no processo de nutrição dos egos. É o que diz aquele conto indígena dos dois cachorros em conflito que existem dentro do ser humano. Qual dos dois cães irá ganhar a luta? Aquele que alimentarmos.

Tenho medo de não estar sendo claro. O que quero transmitir neste texto é a necessidade de tomarmos consciência dos fatos físicos para, em seguida, nos isolarmos (psicologicamente) dos mesmos e não para nos fascinarmos ainda mais. Quero que compreendam que os mesmos fatos que servem para descobrir os defeitos podem servir para alimentá-los. Temos que saber usar esses fatos em nosso favor e não contra nós. Quero que compreendam que os fatos da vida são facas de dois gumes, podem servir para o nosso bem ou para o nosso mal, são males necessários. Não devemos fugir deles, nos isolando para sempre nas montanhas ou em cavernas, e nem tampouco mergulhar nos mesmos. Quem mergulha nos fatos da vida se afoga e é arrastado por suas correntezas. Os fatos da vida constituem um ginásio psicológico mas também uma porta para o abismo, tudo depende do modo como nos relacionamos.

Como nos isolamos psicologicamente dos fatos, de modo a não perdermos os resultados conquistados com a Morte em Marcha? Controlando os sentidos, evitando ver, ouvir e sentir aquilo que fortifica o mal em nós.  Aquilo que faz o mal aflorar também o alimenta. É importante que o mal aflore para que seja visto, mas alimentá-lo é desnecessário e prejudicial.

Quem quer realmente morrer deve evitar todos os estímulos externos e internos aos desejos. As situações exteriores que os evocam e excitam necessitam ser descobertas e evitadas, assim como os pensamentos, falas, recordações e atos. Toda excitação deve ser removida da vida. Isso se aplica à gula, à ira, ao ódio, ao medo, à luxúria, às preocupações e a quaisquer outros defeitos. A excitação passional deve ser substituída pelas emoções superiores e pelo êxtase espiritual.