Quando começou a confusão
As normas repressoras da nossa cultura enviesaram as idéias de muitos estudantes gnósticos sobre a Morte do Ego. Nós, estudantes, confundimos a verdadeira Morte com meros mecanismos de recalque e resistência. Esse prisma fez com que, em todos os livros, "enxergássemos" recomendações à resistência. Os mestres nunca recomendaram a repressão, mas os estudantes "viam" a repressão recomendada em todas as orientações deles.
Na época do Movimento, estabeleceu-se uma verdadeira febre pelo comportamento auto-repressor. Quando os resultados nefastos se faziam sentir, ninguém se perguntava a respeito dos motivos e, à medida que os problemas emocionais e até escândalos aconteciam, simplesmente reagíamos intensificando mais ainda a resistência. Sob o argumento de "não deixar o ego agir" (assim costumávamos dizer), as pessoas faziam cada vez mais esforços para sufocar seus impulsos e emoções. Havia um desespero organizado, as pessoas temiam se tornar obsessionadas, mas caiam cada vez mais fundo nas obsessões. Nada diferente do que sempre houve no cristianismo externo desde a Idade Média...
"Eliminar", "sorrir ante o insultador", "combater", "estar em alerta contra", "lutar contra" etc. são expressões frequentemente usadas pelos mestres que não possuem nenhum significado intrinsecamente repressor, mas que foram assim interpretadas por nós, devido à ótica judaico-cristã em que nossa personalidade foi formada. Essas e outras expressões correntes nos livros e conferências foram erroneamente interpretadas como sinônimos de esforço para se auto-reprimir.
A verdade é que não há como praticar magia sexual, rir diante do insultador e resistir às tentações em geral se não estivermos morrendo realmente. Comportar-se como se estivéssemos mortos sem estarmos realmente é fingir, é ser hipócrita consigo mesmo, o que é outra faceta da repressão. Não há como resistir à tentação sem a Morte verdadeira e não há Morte verdadeira na repressão, apenas comportamento simulado. A resistência à tentação é algo natural para quem está de fato morto. E ninguém consegue morrer resistindo aos desejos, mas sim observando-os. Simular a Morte do Ego para si mesmo é uma forma de reprimi-lo.
Ainda hoje esse equívoco faz estragos entre os estudantes gnósticos. Os estudantes resistem e acreditam estarem assim morrendo. As disciplinas traçadas, em geral, não passam de meros cultivos sofisticados da resistência. O que muitos pensam ser a Morte do Ego é, na verdade, mera simulação, pois esses estudantes, assim que percebem uma mínima manifestação de um defeito, imediatamente a recalcam, suplicam por sua morte, e continuam recalcando-a. É assim que querem morrer, embora isso não esteja nas orientações dos Veneráveis Mestres. Eles conflitam com a mente, querem segurá-la e aquietá-la à força, e lutam com as emoções e desejos, fazendo esforços terríveis para "manter-se sem desejar". Nem sempre o esforço intenso é o esforço correto. Melhor seria que fizessem esforços corretos.
A coisa chegou ao ponto de alguns se exporem gradativamente a ginásios psicológicos cada vez piores e mais difíceis com o intuito de aprenderem a se bloquear cada vez mais. O que queriam era "ser cada vez mais forte", resistir cada vez mais.
Nem toda disciplina, empenho ou esforço é útil, como pensam esses estudantes. Se um homem se disciplinar para comer um pouco de veneno todos os dias, logo estará morto. Se alguém se empenhar com muito esforço em beber somente refrigerantes e mais nada, sem falhar um só dia, terminará encurtando sua vida. Logo, temos que diferenciar a disciplina correta da disciplina incorreta. Disciplinas podem ser inúteis e perigosas. Disciplinar-se para resistir aos desejos com todo o empenho que se possa é disciplinar-se inutilmente. A disciplina para resistir é mero polimento da personalidade, não é Morte coisa nenhuma.
Não poderei compreender os passos de uma dançarina caso eu amarre suas pernas. Quem poderia? Querer enxergar detalhes nos passos da dançarina e ao mesmo tempo imobilizá-la é algo ilógico e absurdo. É exatamente isso o que fazem os amantes da resistência.
O que os recalcadores não se deram conta é que a vivência (experiência) consciente das próprias emoções e desejos extrai compreensão e os enfraquece. Ao contrário do que pensam, permitir conscientemente o afloramento não resultará em obsessão. A obsessão somente ocorre quando a pessoa se identifica e não pede pela Morte à Mãe Divina. Não é o afloramento o fator que alimenta e fortifica os defeitos, mas a identificação com o defeito aflorado. A identificação permite manifestação livre e faz a consciência permanecer na passividade e na inatividade, sem observar e sem nada fazer.
A partir do afloramento, as coisas podem tomar dois rumos, um bom e outro mau (vamos dizer assim por enquanto). Se nos identificamos com o conteúdo aflorado, as coisas tomam um rumo "mau". Se não nos identificamos e o observamos conscientemente, as coisas tomam um rumo "bom", que é o rumo que nos interessa: o conteúdo vai sendo assimilado e compreendido aos poucos e seu poder sobre nós vai se enfraquecendo progressivamente.
O recalque é um mecanismo pelo qual bloqueamos um impulso, o que faz com que ele extravase por outro caminho ou em outro momento; o impulso não sofre nenhum enfraquecimento ou morte, somente é represado e desviado, para aflorar posteriormente sob a forma de perversões, doenças e compulsões.
Resulta curioso que os mais moralistas são justamente os mais compulsivos. Os círculos sociais mais moralistas são os mesmos em que a depravação é mais pronunciada, sempre sob as sombras, é claro. Aparentemente todo mundo é santo, mas às escondidas todos dão vazão aos desejos mais abomináveis. Todos querem apedrejar a adúltera, embora todos cometam adultério em segredo...
É óbvio que, se alguém permitir o livre afloramento de um desejo e manter-se passivo, não fazendo absolutamente nada e entregando-se à fascinação, irá fortificá-lo e ficará dominado. Permitir o afloramento sem os trabalhos complementares requeridos é perigoso. Quem permite o afloramento e não se recorda de si e nem ora, termina identificado. A manifestação livre, sem a atuação desinfectante da consciência, fortifica o poder dos defeitos sobre nós. Mas se tal pessoa se manter em recordação de si mesma, diferenciando-se do elemento manifestado, e passar a observá-lo, irá compreendendo-o progressivamente, detalhe por detalhe, e enfraquecendo-o. Nenhum afloramento sutil deve passar sem ser notado e trabalhado. Não reprima os detalhes, perceba-os conscientemente. Se você ficar tomado após o desbloqueio, é porque não fez as coisas como deveria. Ainda assim, é justamente em pleno delito que mais necessitamos de auto-observação e reflexão, para sair daquele estado.
A negligência em observar e pedir será fatal, o negligente cairá cada vez mais baixo na degeneração. O trabalho interior não é isento de riscos. O primeiro pensamento, golpe emocional ou ato reforçador do desejo ganha força se não for trabalhado imediatamente e se converte em manifestações secundárias, terciárias, quaternárias etc. cada vez mais fortes. A obsessão é o resultado de ações primárias não trabalhadas ou trabalhadas incorretamente, seja por causa da negligência, seja por causa do recalque.
O que devemos buscar é clareza. Você não será capaz de enxergar os detalhes com clareza cada vez maior se aprender a olhá-los corretamente, com interesse real e sincero em conhecê-los. Não condene e nem perdoe nada, somente observe e compreenda mais e mais. Aquilo que perceber que prejudica, peça para ser eliminado e continue a observar.
A palavra "aceitar" tem duplo significado. Aceitar pode significar passividade, aceitação da manifestação plena sem tomar atitude alguma. Mas pode também significar atividade, no sentido de render-se à realidade inevitável para compreendê-la. No último caso há atividade da consciência. Neste sentido, temos que "aceitar" o Ego, recebê-lo tal como é, sem evasivas.
Se não permitirmos que nada aflore, o que será observado, julgado, ajuizado, compreendido e eliminado? Se não permito que o animal saia da toca, como posso pretender descobrir detalhes do seu comportamento?
O afloramento é diferente da atuação livre, em que não se observa e não se faz nada.
Vivenciar conscientemente as emoções e desejos os esgota. A observação enfraquece o poder do desejo sobre nós e a oração enfraquece o poder do desejo em si mesmo, até sua morte completa. Após a petição, apenas observe os resultados e não reprima e nem se identifique.
Se você permitir que o desejo se satisfaça, ele irá embora e não poderá ser estudado. Se você se identificar com ele, irá fortificá-lo de uma forma absurda.
Tudo começa com as manifestações iniciais e sutis. Ao nos identificarmos, permitimos que tomem força e aumentem o seu poder.
O que é identificar-se?
A palavra "identificar" significa, literalmente, encontrar ou diferenciar algo. Identificar-se com algo é perder a noção da distinção entre nós e aquilo. Identificar-se com desejos e pensamentos é confundi-los com a partícula do Ser em nós (a essência). Identificados com um defeito, acreditamos que o mesmo seja parte de nós e não algo estranho, alheio ao Ser.
Quando nos identificamos com uma manifestação sutil do Ego, a mesma colhe força e se torna gradativamente mais e mais poderosa.
O que se requer para a correta auto-observação é não identificar-se e nem reprimir, somente separar-se e contemplar. Quem se debate contra o Ego o faz estando identificado, assim como aquele que se entrega à satisfação e ao hedonismo. Emambos os casos há identificação.
A prática da Recordação de Si permite que se rompa com a identificação. Recordar-se de si mesmo é diferenciar-se, permanecendo na Essência (o Ser Verdadeiro em nós).
Estaremos identificados quando ficarmos "curtindo" um desejo, emoção ou pensamento, sentindo que aquilo nos satisfaz, quando sentirmos uma emoção como parte de nós mesmos e não como algo alheio que nos invade, quando não nos diferenciarmos dos impulsos. Todo defeito possui sua emoção específica e estaremos identificados quando a vivenciarmos sem a menor diferenciação, sem a menor recordação de nós mesmos, completamente "misturados", "apagados", sem consciência ou observação alguma, fusionados com a emoção ou desejo.
Uma coisa é permitir-se sentir uma emoção, outra coisa é identificar-se com a emoção sentida.